Napo agoniza entre o surgiment de novas fonte
de mineração e o descontrole do Estado

Isto já aconteceu.

Napo vive um indesejado déjà vu.

No Equador, foi um boom a notícia da perda maciça e acelerada do rio Jatunyaku na região de Yutzupino. Entre outubro de 2021 e janeiro de 2022, a mineração ilegal se expandiu em 70 hectares, o equivalente a 99 campos de futebol profissional.

Devido à pressão social das comunidades e organizações de defesa dos direitos da natureza, no dia 13 de fevereiro de 2022 à 01h00 foi realizada uma grande operação de fiscalização no que restava do rio. Chegaram ao local a ministra do Interior, o ministro da Defesa e 1.600 uniformizados da Polícia Nacional e das Forças Armadas.

Entre as enormes crateras de rocha e montanhas de entulho, no que antes era um cristalino afluente do rio Napo, foram apreendidos nessa madrugada 148 retroescavadeiras; 97 motores de sucção de água; 16 bombas de água; 80 máquinas de separação de minerais, chamadas "Zetas"; 41 tanques de reservatórios de plástico de 1000 litros com combustível; e outros bens utilizados para extrair ouro.

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Em 1º de março de 2023 o Ministério do Ambiente, Água e Transição Ecológica revogou a licença de funcionamento do maquinário da Prefeitura de Napo. Foto / Cortesia

Na manhã daquele dia de fevereiro, circularam fotos, vídeos e imagens aéreas do desastre ecológico, do biocídio. Houve pessoas presas que logo foram postas em liberdade.

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Um tucano-de-peito-amarelo em seu habitat natural na Reserva da Biosfera de Sumaco em Napo. Foto / Shutterstock

Em maio de 2023, à entrada de Tena, um amplo galpão com as retroescavadeiras apreendidas e paradas continua dando as boas-vindas.

Tena é a capital e a maior cidade da província de Napo, uma região rica em biodiversidade, cercada por exuberantes colinas tropicais e rios que atraem turistas em busca de aventuras de caiaque e caminhadas pela floresta.

Segundo o Ministério do Turismo (MINTUR), em Napo existem 318 atrativos turísticos. A maioria é composta por sítios arqueológicos (81), seguidos por 68 cachoeiras, 15 mirantes e 14 cavernas, como a conhecida Jumandy.

Isso torna a atividade turística o segundo setor de geração de renda econômica da província depois da agricultura. Uma das principais atividades é a tirolesa, praticada em rios como o quase desaparecido Jatunyaku.

Segundo as organizações sociais e os defensores da natureza, mais de duas mil pessoas trabalharam em Tena entre aquele mês de outubro e fevereiro, na extração ilegal de ouro. Apesar de, em novembro de 2021, o estranho aparecimento das quatro primeiras retroescavadeiras às margens do Jatunyaku ter chamado a atenção de ativistas ambientais, que denunciaram ao governo de Napo e até pelas redes sociais, mas não obtiveram resposta. Do mirante Los Ceibos se via claramente o avanço das máquinas laranja que de 4 passaram a 10, a 50, a 100, a 148.

O mirante foi o primeiro a ser fechado. Ninguém ao redor sabe quem exatamente colocou as fitas amarelas com a palavra perigo em letras pretas na entrada, e, se soubesse, não contaria. Por ali passaram as retroescavadeiras para entrar de forma clandestina no rio Jatunyaku. Atualmente, na junção da estrada Troncal Amazônica com aquela via secundária há um posto de controle policial, mas o medo, a dúvida e a desconfiança persistem entre os moradores.

Pessoas da região disseram a esta aliança jornalística que receberam entre US$ 2.000 e US$ 2.500 pela passagem das máquinas retroescavadeiras por suas terras. Em troca de permanecerem em silêncio.

Oliver* (nome protegido) tinha 17 anos quando começou a destruição do rio Jatunyaku em 2021

―Se você se colocasse sob as “retros”, por onde andava encontrava ouro ―, conta como se fosse uma de suas primeiras façanhas da juventude―. Às vezes, nos faziam pagar US$ 1 para entrar e garimpar, mas valia a pena. Isso foi no início, logo começou a chegar mais e mais gente, dizem por aí que foram milhares. Vi grávidas, crianças, adultos. Nós nos empurrávamos para pegar ouro. Eu tive sorte, ganhei alguns milhares de dólares ― diz Oliver com um sorriso ainda inocente.

― E como era o processo? Quem comprava seu ouro?

Um senhor, um velhinho que tinha um estabelecimento em Tena. Apenas com ele você podia trocar ouro por dinheiro.

― Você era jovem. Tinha 17 anos quando o Jatunyaku foi saqueado. Não teve medo?

Com a travessura infantil dos adolescentes, Oliver sorri e concorda que sentiu medo no início, mas depois refletiu que "Se todos fazem isso, por que ele ficaria sem ouro?"

― Minha mãe falava para eu não ir. Mas éramos uma família pobre e, de um momento para o outro, tínhamos muito dinheiro debaixo do colchão.

― E o que fizeram com esse dinheiro?

― Mandamos minhas irmãs para outra cidade para comprar uma casa e sair daqui. Não vou embora porque não quero deixar meus pais sozinhos. Aqui não podíamos ter muito dinheiro porque costumavam vir nos confiscar quando começaram a operar.

― Ganharam muito dinheiro?

- Ufa, sim. Imagine que em um dia bom extraíam vários gramas de ouro. Tínhamos de andar 'alertas’ porque, senão, podiam nos seguir para nos roubar. Houve casos em que os vizinhos se enganaram.

― Alguma vez alguém te roubou?

Não, porque aprendi a ser cauteloso. Uma noite encontrei um pedaço de ouro desse tamanho (com as mãos sem rugas pela idade e bronzeadas pelo sol separa o ar em uns 10 centímetros). E sabe o que eu fiz? Fui à floresta, por volta das 11 da noite. Lentamente, para não fazer barulho. Olhando para todos os lados. Fui bem fundo e fiquei escondido entre uma árvore fazendo silêncio e com o ouro nas mãos. Fiquei quase como uma estátua. Por três horas! Até ter certeza de que ninguém me seguiu. Então, por volta das 2 da manhã, com a luz da Lua, enterrei meu ouro. Só eu sei onde está.

Enquanto continua a caminhada e a conversa com Oliver, tentando chegar ao novo mirante construído a alguns metros à esquerda do antigo, surge um homem. Oliver imediatamente começa a falar sobre pássaros e qual ponto turístico recomenda visitar na região. O homem entrou no mirante. Quando desaparece, Oliver sussurra que essa pessoa é do "grupo de inteligência dos mineradores", que eles estão por toda parte e "avisam o chefe de tudo". Que não gostam que venham pessoas ou jornalistas perguntar muito.

A inação do Estado

Em março de 2022, dias após o desastre de Yutzupino, doze coletivos de Napo ajuizaram uma Ação de Proteção contra o Estado equatoriano por falta de controle sobre as concessões de mineração. Ganharam em primeira e segunda instâncias. Em 13 de abril de 2022, o juiz da Corte Provincial de Napo obrigou o Ministério do Ambiente, o Ministério de Minas e a Agência de Regulação e Controle de Energia e Recursos Naturais Não Renováveis (ARCERNNR) a apresentar, no prazo de 180 dias, um plano de reflorestamento das áreas afetadas pela mineração ilegal em toda a província, causadas pela falta de controle.

As autoridades não cumpriram a sentença.

Os coletivos ajuizaram, em janeiro de 2023, uma nova ação por descumprimento da ação anterior. O juiz da Corte de Justiça de Napo novamente lhes deu razão e ordenou a exoneração dos três ministros, a reparação das áreas afetadas e 48 horas para apresentarem o plano de reflorestamento. Ainda não há respostas estatais e ninguém foi exonerado.

Em 13 de abril de 2023, a Assembleia Nacional aprovou com 121 de 137 votos o Relatório de Inspeção e Acompanhamento da exploração da mineração ilegal em Napo, na região de Yutzupino. O documento reconhece a inoperância do Estado e os grandes prejuízos sociais e ambientais em um raio de 20 quilômetros ao redor do rio Jatunyaku, chamado “Ponto Zero”. A Resolução da Assembleia Nacional é vinculante e inclui 36 obrigações e ações imediatas que vários Ministérios deveriam cumprir para deter o biocídio de Yutzupino.

Exigências como a de que em 60 dias o Presidente do Equador reforme os Decretos Executivos 754 e 151 relacionados à mineração.

O Ministério de Minas foi obrigado a reestruturar a Agência Reguladora em no máximo 60 dias. Isso não aconteceu. Apenas trocaram o diretor, que disse a esta aliança jornalística, por meio de seu departamento de Comunicação, que dará entrevistas quando estiver mais informado sobre o assunto.

O Ministério de Minas teve 90 dias para entregar à Assembleia Nacional um relatório geológico e um novo regulamento que melhore os processos de controle. E, ao mesmo tempo, deve solicitar os laudos técnicos e legais à Agência Reguladora para a extinção dos direitos de mineração.

A Agência Reguladora se viu obrigada, em menos de 30 dias, a contratar seis especialistas em monitoramento e controle de mineração apenas para a província de Napo.

O Ministério do Ambiente teve um prazo de 30 dias para criar os processos de apuração dos danos ambientais.

O Ministério da Saúde recebeu 30 dias para fazer um estudo sobre o grau de impacto à população derivado da atividade mineira.

O Ministério de Transporte teve 30 dias para regularizar todas as máquinas e retroescavadeiras, além de se certificar de que possuem o certificado de instalação de GPS.

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As barras de ouro são a última etapa do refino do ouro. Para isso, precisou passar pelo uso do mercúrio, cuja utilização na mineração está proibida no Equador desde 2013. Foto / Cortesia Pepe Moreno / Napo Ama la Vida

“Nada foi cumprido. Nada. Às vezes me decepciono com tanto circo e novela que não terminam em nada concreto, mensurável e tangível”, disse o Defensor Público de Napo, Andrés Rojas, em 18 de maio de 2023. Dia em que a Assembleia Nacional foi fechada.

Rojas está monitorando o cumprimento do Relatório de Resolução pelo qual tanto lutou. Ele conta que, da Presidência, a última coisa que lhe disseram foi que ainda não tinham recebido a notificação.

O Ministério do Ambiente disse a esta aliança que está analisando a situação e que é tudo o que pode dizer. A resposta foi parecida no Ministério de Minas. A Agência Reguladora alega que está quase renascendo e desconhece essa Resolução. O Ministério do Transporte não nos forneceu nenhuma resposta até o momento. Vários responsáveis das instituições públicas citadas não conheciam a Resolução com base no relatório de Fiscalização e solicitaram cópia do documento para saber do que se trata.

Gustavo Redín é advogado especialista em questões ambientais e faz parte da organização CEDENMA ― que reúne várias organizações ambientalistas equatorianas―. Recordou que não se pode esperar muito se, ainda por cima, o órgão de fiscalização que emitiu esta Resolução, a Assembleia Nacional, já não existe como tal após a Morte Cruzada.

Apesar disso. Apesar de tudo. Apesar das operações, das notícias, dos processos, da fuga de ouro e da devastação ambiental, Napo está vivendo um segundo biocídio.

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Apesar de no dia 1º de março de 2023 integrantes da Polícia Nacional, do Ministério do Ambiente e do Ministério Público terem paralisado as atividades da concessão da Prefeitura, no dia seguinte as máquinas voltaram a funcionar. Foto / Cortesia

Chegou um desastre maior que está passando despercebido

Por favor, não diga meu nome ― esta frase se repete entre as pessoas da região que moram perto e que inclusive denunciaram as operações de mineração―. Alberto* é natural da região do rio Huambuno. Trabalha com turismo ecológico. Faz parte de uma comunidade ancestral que não concorda com a mineração.

Em frente à sua propriedade, do outro lado do rio, nos últimos anos viu como aumentou a presença de retroescavadeiras que vão cavando o solo a mais de 10 metros para extrair ouro, destruindo tudo o que está em seu caminho.

Alberto documenta essa atividade com fotos e vídeos há anos, pelo que em uma tarde do ano passado foi ameaçado com uma arma na têmpora.

― Veio um homem, apontou para mim e disse que se eu continuar denunciando vai me matar e me deixar largado como um cachorro na rua ou no rio. Eu, na época, achei que ele tivesse disparado em mim, mas não disparou.

O caso é complicado e está sendo investigado pelo Ministério Público. Alberto documentou a presença de 18 frentes de mineração com mais de 80 retroescavadeiras na rota Dorado-Huambuno-Cashayaco-San Pedro de Huambuno, Alto Huambuno e Río Blanco. Ele diz que as máquinas trabalham noite e dia.

― Estão destruindo o rio no qual costumávamos beber água e tomar banho. A água começou a ficar contaminada. Rãs, pássaros e toda a biodiversidade são afetados. Nunca houve socialização nem capacitação, mas, da noite para o dia, apareceram as máquinas. Apresentei uma denúncia e meus tios também apresentaram mais sete denúncias, mas nunca fizeram o laudo pericial e está tudo na Promotoria de Quito― diz Alberto com uma voz nostálgica.

Um estudo da Universidade de Ikiam, além de demonstrar que em Napo há rios mortos, como o caso do Chumbiyaku, que tem 500 vezes mais metais pesados do que os limites permitidos, indica que nas áreas afetadas pela extração aurífera o solo sofre erosão, perde matéria orgânica e a drenagem gradual de resíduos poluentes desce às camadas inferiores do solo, tornando as terras tóxicas e inúteis.

Famílias da região de Ahuano, próximas às populações de Huambuno Alto e Río Blanco, denunciaram danos à pele por se banhar no rio Napo.

A comunidade de Río Blanco se dividiu. Cinco famílias criaram uma nova, chamada Ñucanchi Urku, e deram passagem à mineração. Alberto cita as concessões Napu Kury, Huambuno 1, Huambuno 2, Huambuno 3 e o Emprendimiento Minero Familia Romero.

Napu Kury não está na lista das operadoras registradas no Ministério de Energia e Minas. O Emprendimiento Minero Familia Romero está concessionado ao senhor Iván Romero.

Huambuno 1, Huambuno 2 e Huambuno 3 estão concessionadas à empresa Transconmi Construcciones Cía. Ltda. O atual representante legal é Nelson Ashanga. O fundador, Gerente Geral e acionista desta empresa de 2010 a 2021 foi Telmo Andrés Bonilla Abril, prefeito do cantão (o equivalente a município, em português) Archidona, na província (o equivalente a Estado) de Napo. Segundo a Superintendência das Companhias, a empresa Transconmi não tem como fim a atividade de mineração, mas sim a construção de estradas.

Tentamos nos comunicar por várias vezes com o ex-prefeito de Archidona, Andrés Bonilla, mas não obtivemos resposta. Nem por parte da empresa, nem por telefone ou pelo e-mail (yahoo) que a Transconmi cadastrou na Superintendência das Companhias e que, coincidentemente, é o mesmo e-mail de contato da empresa Terraearth Resources.

Terraearth Resources é uma empresa de mineração de capital chinês que possui diversas concessões para a extração de ouro na província de Napo. No entanto, tem recebido várias notificações do Ministério do Ambiente devido a infrações ambientais, mesmo assim continua operando.

No Sistema Único de Informação Ambiental (SIUA) do Ministério do Ambiente estão registados três pedidos de licença ambiental para as três concessões Huambuno. A última é recente e datada de 23 de abril de 2023. Todas foram arquivadas, o que significa que não cumpriram os parâmetros para obtenção da licença ambiental. Porém, no terreno há máquinas operando.

De acordo com o Monitoring of the Andean Amazon Project (MAAP), em 2022 a expansão da área de mineração em Huambuno foi de 86,1%. Entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023, foram destruídos 110 hectares de selva e áreas agrícolas. Isso é o dobro de Yutzupino, onde a mineração expandiu em 55 hectares entre janeiro e dezembro de 2022, segundo um novo cálculo do MAAP.

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Para muitos, se em Yutzupino foi um biocídio, Huambuno é outro maior. Por isso, Fiodor Mena, presidente do Colégio de Engenheiros Ambientais do Equador e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Natureza, acredita que o Estado deve decretar emergência ambiental na província de Napo.

No entanto, até o momento não há operações importantes naquela região, já não chegam os ministros, nem os policiais, nem os militares. Quem denuncia vive sob ameaças.

A Agência Reguladora realizou em 2022 348 operações contra a mineração ilegal em todo o país. Dessas, apenas 20 foram em Napo, apesar do crescimento avassalador das frentes mineradoras nessa província. A quantidade total de fiscalização é 17% menor que em 2019, ano em que foram realizadas 418 operações em nível nacional.

Entre as causas apontadas por Fiodor Mena para o desastre dos rios de Napo está a fragilidade institucional. De acordo com o relatório da Comissão de Biodiversidade da ex-Assembleia Nacional, até 2022 havia apenas um técnico especialista em mineração que precisava controlar 552 concessões mineradoras registadas e 171 em trâmite distribuídas em três províncias: Napo, Orellana e Pichincha.

Além disso, esse técnico precisava realizar procedimentos administrativos e relatórios. Muitos relatórios.

O mesmo documento da Assembleia mostra que existe um grande número de trâmites represado na Agência Reguladora: 275 processos pendentes no sistema Quipux, 190 informações semestrais de produção, 165 relatórios anuais de exploração e produção, além de denúncias de cidadãos e os acompanhamentos às operações de fiscalização solicitadas pelo Ministério do Ambiente, Ministério Público, Municípios, entre outras instituições.

Para a docente universitária e cientista política especializada em questões ambientais, Mishel Báez, o Estado está aliado ao setor minerador. “O Estado defende os interesses do capital minerador e vice-versa. Na verdade, há recompensas como cargos importantes nas empresas após a saída do setor público. É uma prática muito comum os funcionários das empresas extrativistas irem para cargos públicos e depois retornarem a cargos melhores nas privadas. Isso é chamado de dinâmica das portas giratórias. Nesses intercâmbios, o Estado e a mineradora vivem em constante conluio”, garante.

Com as portas giratórias é possível levar e trazer informações, acordos e negociações entre os setores privado e público. Por isso, países como os Estados Unidos e a França implementaram leis que permitem um "período de arrefecimento", que dura de um a três anos, no qual um funcionário não pode exercer cargos importantes no mesmo setor e vice-versa. É uma forma de mitigar um pouco esse conflito de interesse.

No Equador, foi proposta uma Lei para controlar as portas giratórias. O debate do projeto de lei ocorreu no Plenário da Assembleia, durou menos de duas horas e foi arquivado pela maioria em 24 de março de 2022.

Mineração sem estrada não é mineração

Tenho medo disse com a voz trêmula Gonzalo*, que vivia a 10 minutos, rio abaixo, da comunidade de Alberto, do outro lado do rio Napo.

Gonzalo era operador turístico e começou a observar, em setembro de 2022, entre as saídas e chegadas de turistas em lanchas que, em frente à sua propriedade, a maquinaria pesada desviava abertamente o rio Napo na foz do rio Arajuno. Os visitantes começaram a reclamar do barulho estrondoso do maquinário que não parava 24 horas por dia. Alguns saíram chateados, outros, surpresos.

Ponte suspensa sobre o rio Arajuno. Foto / Shutterstock

Gonzalo tirava fotos e gravava vídeos e os publicava nas redes sociais. A região que estava sendo removida era um banco de areia que fazia parte da comunidade Balzachicta, na qual existe uma concessão para a extração de material pétreo que pertence ao Governo Autônomo Descentralizado de Napo. Esta concessão ainda não possuía as licenças ambientais para operar e o registro no Ministério de Energia e Minas ainda está em trâmite. No entanto, desde setembro de 2022, chegaram cada vez mais caminhões basculantes, retroescavadeiras e classificadoras de materiais ao leito do rio.

Gonzalo acompanhou dia após dia o avanço da extração de material pétreo naquela espécie de banco de areia de Napo. Ele enviou ofícios aos ministérios do Turismo, Ambiente, Minas e ao Ministério Público.

Em 5 de dezembro de 2022, a Direção Regional do Ambiente suspendeu as operações da concessão devido a infrações como:

  • Não contar com Cadastro Gerador de Resíduos Perigosos.
  • A Contaminação e o desvio do curso fluvial do rio Napo.
  • Não ter permissões administrativas.

Fiodor Mena era o então diretor regional do Ministério do Ambiente e confirma que não tinham todos os atos administrativos em dia. Por isso deu ordem para a suspensão.

No entanto, as máquinas continuaram em funcionamento.

Em 31 de janeiro de 2023, o ministro do Turismo, Niels Orsen, exortou a prefeita de Napo, Rita Tunay; o diretor da Agência Reguladora, Luis Maingon; e o prefeito de Tena, Carlos Guevara; a tomarem precauções na hora de realizar obras de infraestrutura. Lembrou que o rio Napo, entre outros, foram declarados "locais de interesse turístico" em 2020 e que durante a solicitação ou a emissão de licenças ambientais para a extração de material pétreo e de mineração deve ser levado em conta a existência de recursos e atrativos.

Uma semana depois, a Prefeitura respondeu a essa pasta do Estado confirmando que já tinha solicitado todas as licenças e que o material extraído da concessão Balzachicta GADP em Napo está sendo usado para uma importante obra: "os 14 quilômetros de pavimentação do Rio Pusuno - Ahuano terceira etapa, desejada por muitos moradores”.

Em 1º de março, com as insistentes denúncias nas redes sociais de alguns moradores como Gonzalo, em uma grande operação o Estado foi obrigado a inabilitar as máquinas da Prefeitura por infrações administrativas e ambientais.

Apesar disso, no dia 2 de março as máquinas continuaram funcionando.

Gonzalo denunciou em vários veículos esse contínuo descumprimento até que as autoridades distritais e paroquiais favoráveis à mineração se reuniram com os moradores da região para convencê-los dos benefícios da nova estrada.

Em uma assembleia, que ficou gravada, as lideranças locais disseram ser necessário fazer justiça indígena aos estrangeiros que se intrometem nas decisões da província (Gonzalo não é equatoriano). Assim, chegaram quatro ameaças de morte e de justiça indígena. Gonzalo precisou sair do país por medo e, em um ato de pesar ao falar com esta aliança jornalística, chorou ao dizer que se sente vivendo no exílio.

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Jose Punzhi cresceu entre o rio Napo e aquela selva na comunidade de Balzachicta. Parte de suas terras foi invadida, primeiro por mineradores em agosto de 2022 e depois pela Prefeitura. Nunca pediram permissão para operar máquinas em sua propriedade. Os mineradores da região lhe disseram que aquelas terras já tinham outro proprietário e Punzhi entrou com um processo judicial.

―O que os senhores da mineração fazem, que segundo eles se apresentam como empresários, é dividir o povo. O que fazem é comprar pessoas. Os operadores da mineração oferecem tudo para a comunidade, acredite. Eu cresci, me eduquei, morei ali com os meus pais. Essas terras nos pertencem. Os mineradores chegaram a oferecer ao conselho da comunidade 15% do que sai do ouro, uma obra de compensação, além de dar um trabalho às pessoas. Depois ofereceram uma festa com comida e bebida. Pronto, comprada a consciência de uma parte do povo! Eles não nos levaram em consideração. Eles deveriam perguntar a todos nós que possuímos propriedades ali. São cerca de 40 famílias e a maioria fez festa. Com as denúncias, conseguimos suspender as operações de mineração porque não tinham as licenças. Alguns desses supostos empresários desceram de Balzachikta para Huambuno.

Surgiu então a questão da extração de material pétreo em sua orla.

― Meus vizinhos me contaram que foi suspensa a extração que tinha sido da Prefeitura. Que era para uma obra de asfalto, supostamente para melhorar a via. Não impedimos totalmente a extração do material, mas que seja feita uma mineração responsável, o que estamos vendo é que eles mineram como bem entendem. Tem gente que não quer se comprometer [exigindo mineração responsável] porque tem medo. Meus dois vizinhos não assinaram a denúncia, disseram que não queriam ter problemas ―, diz Punzhi.

Segundo documentos do Governo Autônomo Provincial de Napo, a "manutenção do anel viário Ahuano - Pununo" foi adjudicada ao CONSÓRCIO RIO PUSUNO AHUANO em 26 de maio de 2021 por um valor de US$ 7.406.960 para o asfaltamento de 14 quilômetros da ponte Pusuno-Ahuano para a paróquia de Ahuano, onde se encontra Balzachicta.

“É por causa desses milhões que algumas pessoas estavam tão envolvidas na pavimentação asfáltica e na extração de rochas na área de Balzachikta”, diz Fiodor Mena. Ele garante que foi construído um muro para desviar o rio Napo na região de Balzachikta e que isso pode ser confirmado com as inspeções do Ministério do Ambiente. Além disso, esta estrada passa pelas concessões de mineração das regiões de Huambuno, Río Blanco e Ahuano. Os moradores não param de se perguntar quem são os verdadeiros beneficiários.

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Maquinário pesado da Prefeitura de Napo trabalha dia e noite na extração de material pétreo na região de Balzachikta, às margens do rio Napo, embora a concessão ainda não possuísse todas as licenças. Foto / Cortesia

Em abril de 2023, foram finalmente aprovadas as licenças de funcionamento para a concessão da Prefeitura de Napo: “já lhes demos a licença, eles tinham cumprido os papéis que tiveram de apresentar e foi um pedido de alguns moradores, proprietários de hotéis e pousadas que disseram que se beneficiariam com a estrada”, diz Fiodor com um meio sorriso irônico e desapontado. Depois, com as mudanças de autoridades (em 2 de abril de 2023, o vice-ministro do Ambiente, José Antonio Dávalos, passou a liderar esta pasta), Mena foi destituído do seu cargo.

María Belén Noroña, professora da Universidade Estatal da Pennsylvania e especialista em temas de conflitos socioambientais em atividades extrativistas, alega que, em poucos anos, vai acabar o petróleo de boa qualidade no Equador e o Estado deverá olhar qual setor estratégico fortalecer para suprir as necessidades financeiras do Estado. A mineração está na mira.

Mishel Baez concorda com isso e acredita que a mineração ilegal é "a ponta da lança" que favorece o discurso do Estado de que a solução seria a mineração em larga escala, com grandes empresas de investimento, tecnologia de ponta e excelentes relações com o Estado. Essa narrativa, diz Baez, é uma estratégia para levantar uma imagem impecável de megaprojetos de mineração como Cóndor Mirador e Fruta del Norte que operam no sul do país.

“O que não se leva em consideração é que, em grande, média ou pequena escalas, a mineração sempre trará conflitos porque é a posse forçada da terra, da água e dos recursos naturais. Em nossos estudos pudemos constatar que os mesmos problemas das pequenas mineradoras ocorrem nas mega mineradoras. Existem direitos igualmente violados. Começando pelo fato de que nenhuma empresa do país cumpriu o mandato da Consulta Ambiental nem da Consulta Prévia, livre e informada”, conclui Baez.

Nem tudo está perdido

Desde 2021, a força, a presença e a insistência dos movimentos sociais e ativistas ambientais têm sido relevantes. Até antes da pandemia não se via a cobertura ampliada que agora existe sobre temas como meio ambiente e mudanças climáticas. Os Fóruns e Cúpulas de comunidades indígenas que defendem seu território são cada vez mais comuns e conhecidos.

María Beatriz Eguiguren é a diretora do Observatório de Conflitos Socioambientais da Universidade Técnica Privada de Loja. Esta instituição acadêmica também faz parte do Conselho Nacional dos Defensores dos Direitos Humanos e da Natureza. Em uma reunião presencial, a especialista em Ciências Sociais mostra todas as publicações que o Observatório produziu em seus 15 anos de criação e é composto por um grupo interdisciplinar que inclui ecologistas, advogados e ativistas.

Suas pesquisas lhes permitiram criar uma metodologia de trabalho própria para determinar e gerenciar os conflitos socioambientais. É conhecida como a metodologia Obsa.

Em uma segunda reunião virtual com Eguiguren e Fiodor Mena fica claro que as ações que vêm sendo realizadas em Napo, que começaram com as reivindicações de menos de dez pessoas insatisfeitas e que em dois anos conseguiram firmar uma Resolução de Fiscalização Ambiental na Assembleia Nacional, não foram por acaso, nem por sorte, nem por pura paixão.

Foi dado passo a passo. Enquanto Eguiguren explicava a metodologia, vieram à mente as fotos, os vídeos, os encontros com comunidades e povos ancestrais, a noite de guayusa e chicha em Tzawata, as lágrimas e a raiva em Shiguacocha, os sussurros anônimos ao telefone, as mulheres lutadoras de comunidades como La Serena, Yutzupino, Río Blanco, Balzachikta. Os rostos visíveis como os de Sandra, Pepe, Andrés, Fiodor; os protestos contra a mineração, as ameaças e a esperança. Tudo faz parte de uma nova etapa social em que a mineração incomoda e se acomoda, mas não mais de forma passiva, mas enfrentada, debatida, compreendida. Para María Belén Noroña, a explicação está no fato de que surgiram personagens ativos das lutas em rede que estão abrindo espaços para além dos limites políticos e nacionais.

*Os nomes foram alterados para garantir a segurança das fontes.