São duas da manhã.
A noite é de um negro infinito, pesado, ruidoso.
As pessoas começam a chegar à casa comunitária retangular, sem paredes, com chão de terra e altas colunas de bambu. No telhado de palha e eternit estão penduradas bandeirolas coloridas. Dois refletores banham os visitantes com uma luz acobreada.
―Alli puncha
―Alli puncha
Cumprimentam-se com a mão e tomam seu lugar mulheres com bebês nas costas, homens adultos com lanças e jovens com telefones celulares. Todos ao redor de uma fogueira aguardam o início da Guaysupina, um ritual que consiste em tomar guayusa na madrugada.
Sobre o carvão, em uma panela queimada ferve a guayusa que será compartilhada às três da manhã deste sábado, 18 de março de 2023, como o início oficial das festividades da fundação da comunidade Kichwa Tzawata – Ila – Chucapi.
Comemoram sua existência, embora tenham sido invisíveis por mais de 300 anos.
Na sala aberta entra Kambak Wayra Alvardo Andi. Cumprimenta com um leve sorriso quem já está sentado e vai conversar com uma das mulheres que prepara o tradicional chá. Em seguida, o líder da comunidade se senta e olha silenciosamente por cima do fogo; com os pés imantados à terra e um pouco curvado, como se estivesse cheio do cansaço de quem dá à luz ou dos que sobrevivem a uma batalha.
Kambak revê o discurso que fará em algumas horas.
Kambak espera que tudo corra bem nestes dois dias de comemoração.
Kambak imagina o que aconteceria se, na vulnerabilidade da festa e no alvoroço, viessem despejá-los à força.
Kambak esboça, mentalmente, a carta resposta que terá de escrever ao Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
Kambak está ali, mas não está. Assim como a sua comunidade ancestral.
Seu olhar se perde entre a fumaça e a luz acobreada.
Chega o Dj.
Terras inúteis e sem cultivos
No final da década de cinquenta do século passado, o Equador iniciou o que ficou conhecido como a feira das concessões.
Na Constituição de 1967 se determinou que as terras sem cultivo e abandonadas seriam bens do Estado que poderiam passar a particulares cuja finalidade fosse a exploração agrícola, a mineração e a colonização.
Em 22 de maio de 1958, o Instituto de Reforma Agrária e Colonização (IERAC) concedeu 200 hectares da antiga Fazenda Ila aos Missionários Redentoristas, representados pelo Reverendo Daniel Alarcón Falconí, que, em 7 de junho daquele mesmo ano, recebeu mais 200 hectares do IERAC, de acordo com o Registro da Propriedade do cantão de Tena, na província amazônica de Napo.
Quatorze anos depois, em 1972, o IERAC concedeu à senhorita Laura Margarita Vasco Arellano um lote contíguo ao dos missionários de 227 hectares.
Em 1979, o casal Vasco Arellano e a senhorita Laura Margarita compraram os 400 hectares dos missionários, formando uma única propriedade de 627 hectares às margens do rio Anzu.
As famílias kichwa assentadas no mesmo território e distribuídas em três comunidades: Tzawata, Ila e Chucapi não ficaram sabendo dessas transferências de escrituras e assinaturas. Elas continuaram vivendo em suas casas altas de bambu, enquanto trabalhavam a terra para o consumo próprio e faziam escambo com as comunidades vizinhas. Continuaram bebendo e se banhando nas águas cristalinas do rio.
Não tinham como saber desses negócios. Os habitantes não tinham estradas que os comunicassem com o exterior. Faziam tudo por via fluvial ou por estreitos caminhos que percorriam a pé, durante horas, até chegar em Tena, a cidade mais próxima. Não sabiam das leis nem das concessões. Estavam isolados, repetindo o que seus avós, bisavós e tataravós faziam. A comunidade manteve sua língua (kichwa); seus costumes ancestrais de caça, pesca e plantio de mandioca e banana. Mantiveram seus rituais sagrados.
Enquanto a vida seguia na comunidade, os 627 hectares continuaram passando de mão em mão nos cartórios de Registro da Propriedade de Tena.
Em 1982, Yanouch Agrícola y Ganadería Cía. Ltda. comprou a propriedade da família Vasco Arellano. Ninguém da empresa veio a Tzawata para tomar posse do material. Em 2000, a senhora Consuelo Donoso Echanique comprou a fazenda de Yanouch. Três anos depois, Donoso vendeu a propriedade para a mineradora Hampton CourtResources Ecuador S.A., que, por sua vez, em 2004, passou os direitos para a empresa Merendom del Ecuador.
E o conflito começou.
Merendon entrou na comunidade com a ideia de implantar projetos turísticos. Quando soube que havia ouro no subsolo, a empresa voltou-se para a indústria de mineração e iniciou atividades de exploração nos rios Pupo e Ila.
De 2006 a 2008 realizou a extração aurífera, até que o Mandato Minerador aprovado pela Assembleia Constituinte obrigou a paralisar todas as concessões mineiras para serem renegociadas com a nova Lei de Mineração.
A comunidade diz ter recebido indenizações insignificantes e que a semente da divisão social rondou o território durante o tempo em que a mineração se instalou às margens de seus rios. Tzawata sempre foi contrário à presença de Merendon no que assegura ser seus territórios ancestrais. Por sua vez, Chucapi e Ila chegaram a conversar com Merendon, alegando que nunca poderiam vencer uma batalha judicial.
― O processo de luta é complicado, desgastante ― diz María Belén Noroña, professora da Universidade Estadual da Pensylvania, especialista em ecologia política e pesquisadora de conflitos socioambientais em temas como mineração e petróleo. Exige a ida constante a reuniões, para enfrentar a criminalização dos defensores da natureza, por isso muitos povos desistem da posse, cedem ou negociam com as empresas extrativistas. Além disso, naqueles anos, a partir de 2012, houve uma ruptura entre a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) e o governo de Rafael Correa, que, por sua vez, expulsou algumas ONGs, o que enfraqueceu os processos de luta social ― explica a acadêmica.
Noroña publicou alguns artigos relacionados à mineração, ao setor petrolífero e às disputas sociais. Em sua análise das lutas em rede ou lutas coletivas na Amazônia se remete ao caso Tzawata. Destaca que essa comunidade conseguiu sua legitimidade sem ter as terras. Sua estratégia tem sido criar e manter redes com todo tipo de organizações, grupos sociais, trabalhadores rurais, pessoas da comunidade, voluntários internacionais, instituições estrangeiras e que essas alianças são móveis, segundo as circunstâncias.
As comunidades de Ila e Chucapi, ao ver que não tinham os resultados esperados, que não eram cumpridas as ofertas da mineradora e que, além disso, foram testemunhas dos danos ambientais, como a destruição de alguns de seus locais sagrados, florestas, rios e fossas, decidiram não continuar apoiando Merendon e se juntaram à luta de Tzawata, formando uma única frente chamada Tzawata. Também iniciaram uma série de reuniões com a Conaie, a Foin (Federação das Organizações Indígenas de Napo) e outras organizações sociais para protestar contra a contaminação de seus rios e o conflito social que começou a ocorrer.
Então garantem que iniciou um processo de intimidação à população, com proibições ao cultivo de seus produtos. Tzawata, ao ver sua capacidade de sustento afetada por essas restrições, decidiu se envolver em um complexo labirinto legal. Foi reconhecida como comunidade indígena de raízes ancestrais pelo Conselho para o Desenvolvimento das Nacionalidades e Povos do Equador (CODEMPE) em 15 de julho de 2011.
Em 10 de setembro de 2010, o extinto Diario Hoy entrevistou a gerente geral do Merendon na época. Catalina Feijoo Marín deixou claro que eles eram os proprietários dos 627 hectares da Fazenda Ila, no cantão Carlos Julio Arosemena Tola. Feijoo disse ao jornal que a empresa não tinha nenhum problema com as comunidades do entorno, mas que enfrentava uma invasão de pessoas "de fora com interesses particulares".
Merendon iniciou um processo administrativo contra o Estado equatoriano com o objetivo de provocar os despejos da comunidade. O antigo Inda, agora Ministério da Agricultura e Pecuária, ordenou nesse mesmo ano de 2010, com a Resolução n.º 157-2010 de 18 de maio, o despejo imediato dos habitantes de Tzawata.
Houve duas tentativas. Na primeira, as forças públicas conseguiram destruir algumas plantações. Na segunda, toda a comunidade resistiu e manteve o território. Quem esteve à frente foram as mulheres e as crianças, cujas armas eram pequenos jatos de urina e pimenta-aji, como descreve a doutora María Belén Noroña, em seu estudo de caso sobre a resistência de Tzawata.
Kambak confirma o fato e diz que sim, a urina era a principal arma das crianças. E mostra uma foto daquele momento.
Em 10 de janeiro de 2011 e em dezembro de 2012, Tzawata-Ila-Chucapi apresentou duas petições à Subsecretaria de Terras do Ministério da Agricultura sobre a expropriação do título de propriedade da mineradora. Em 2012, Merendon, por sua vez, solicitou uma licença ambiental ao Ministério do Ambiente.
Passaram-se 10 anos de silêncio, 10 anos de tranquilidade, 10 anos de paz. 10 anos em que Merendon mudou de nome duas vezes até se tornar Terraturismo. S.A.
Esta aliança jornalística tentou se comunicar com a empresa, que não tem registro na Superintendência de Companhias nem na Receita Federal. Há apenas uma página institucional com um único número de telefone para o qual ligamos e nos disseram que o Dr. Aurelio Quito é o consórcio de advogados que os assessora. Até o fechamento desta edição não conseguimos contato com o Dr. Quito.
Fiodor Mena, engenheiro em Ciências Ambientais e ex-diretor regional do Ministério do Ambiente, estava ciente das audiências por causa do litígio do caso Tzawata. Confirma que a origem da empresa não é clara e que muitas vezes está ligada à Terraearth Resources, mas não há evidências nem todos os documentos básicos sobre essa companhia. Em torno da empresa há uma enorme sensação de mistério.
Em outubro de 2021, pegos de surpresa, os habitantes de Tzawata foram atacados por 200 pessoas que chegaram com facões, barracas, comida, panelas, botijão de gás, telhados, motosserras, arames farpados, carabinas e até colchões sobre a cabeça.
― A ideia deles ou da Terraturismo era tirar a gente e ficar. Disseram que vinham por parte da Terraturismo para se apropriar da comunidade, chegaram com tanta coisa que depois a polícia precisou confiscar― Lembra Kambak.
Tzawata ativou o protocolo da força de segurança indígena. Chegaram pessoas de comunidades vizinhas. Estourou uma guerra não declarada e os forasteiros não conseguiram expulsar os kichwas da antiga Fazenda Ila.
Para Noroña, essa é a principal estratégia de Tzawata, acionar a rede no momento certo nas tentativas de despejo. “Eles sabem quando vão ser despejados e na noite anterior movimentam as redes. Aprenderam a administrar o território por meio das suas relações”.
"Graças ao facão, uma companheira não morreu", disse Kambak, após sair de seus pensamentos e enquanto se prepara para fazer o discurso de abertura das festividades naquela madrugada de 18 de março de 2023. "Meus companheiros dizem que graças a Deus nossa guerreira não morreu, mas digo que foi graças ao facão que esteve a postos", comenta com uma pitada de raiva.
Desde esse dia, homens e mulheres em Tzawata se organizam em grupos de quatro pessoas para cuidar dos três acessos à comunidade durante as 24 horas do dia. Com lanças e camisas pretas, não pararam de vigiar nem por um único instante.
Tzawata dorme com apenas um olho.
“Isto é cansativo, desgastante. É terrível não poder viver em paz”, são as últimas palavras de Kambak antes de subir ao palco.
Leonir Dall'Alba foi um missionário brasileiro que chegou a Tzawata em 1987 e compilou entrevistas com o objetivo de entender a origem dessa comunidade kichwa. Seu livro Pioneiros, nativos e colonos:O Dourado no século XX foi publicado em 1992. Entre os depoimentos está o do filho de Carlos Sevilla, um dos proprietários de terra que confessou que cerca de 80 famílias indígenas viviam em suas terras e formavam clãs com os sobrenomes Alvarado, Grefa, Tapuy, Pauchi, Ila, Dahua, Shiguango.
Luis Alfonso Tapuy tem 58 anos e mora em Tzawata. Suas lembranças se sobrepõem à música que começou a tocar na grande caixa de som preta que o DJ trouxe para a festa de aniversário da comunidade.
"Esta terra é nossa". É a primeira coisa que ele diz e lembra das longas caminhadas que fazia quando criança com sua mãe para vender em Tena os produtos da sua chácara: “caminhávamos horas e nos fortalecíamos com a chicha que as pessoas sempre colocavam no caminho". Seu pai faleceu aos 90 anos e, para o orgulho de Luis Alfonso, pôde lhe contar toda a história do povo antes do início das concessões estaduais, o que lhe permite afirmar que "não somos recém-chegados, nascemos aqui, por isso lutamos. Se eles nos tiram, onde vão morar nossos filhos, netos e bisnetos?”
Atualmente, até quatro gerações convivem entre si. Em Tzawata, todo ano fazem um censo comunitário. Em 2023, há 393 pessoas entre crianças e adultos, 20 recém-nascidos e 15 grávidas.
Alex Grefa, um músico kichwa de longa data, chega às festividades da fundação da comunidade Kichwa Tzawata – Ila – Chucapi. É bastante conhecido na Amazônia. Ele vai cantar com o peito nu, mas coberto com colares coloridos. Minutos antes do show, começa a falar e acrescenta suas lembranças às de Luis Alfonso Tupay. O artista não é dessa comunidade, mas a vivência, os costumes e as longas caminhadas são os mesmos:
“Eu caminho bastante / para chegar à minha comunidade / Chego cansado / peço chicha às mulheres / para acalmar a minha fome”.
Esse é o refrão de uma de suas composições musicais. É difícil para ele traduzir para o espanhol. Grefa só canta em kichwa. Fala emocionado de Takitamia, o grupo do qual fez parte. Relembra de um de seus maiores sucessos: cilularmuku: uma ode ao uso do celular.
Kambak sobe ao palco, faz um discurso curto e contundente. Diz que lutarão por sua terra, por seus ancestrais e por seus filhos. Que darão até a própria vida.
―A vida porque o nosso sangue já está nesta terra― dirá Kambak ao amanhecer, enquanto o Yachak (sábio da aldeia) encerrará o festival com o ritual da pimenta-aji.
Os moradores contam que um dos rios da comunidade se chama Pupo (umbigo, em português) porque em suas margens enterravam o cordão umbilical dos recém-nascidos.
Com paixão, após os discursos, Alex Grefa cantou.
Após a dança Tushuna ―seis mulheres vestidas de azul se tornam apenas uma em uma coreografia que representa a vida na selva―, os habitantes de Tzawata fazem fila em frente ao Yachak que está ajoelhado e tem aos seus pés, sobre uma manta colorida, pimenta-aji, urtiga e tabaco. A urtiga serve para limpar o corpo com golpes nas costas. O tabaco é colocado no nariz para purificar a respiração; e a pimenta-aji, nos olhos, para enchê-los de força.
Homens, mulheres e algumas crianças vão tirando as camisetas enquanto avançam na fila. Os curiosos se aglomeram ao redor e filmam o sofrimento com seus celulares. Ao fundo toca a música do grupo Takitamia.
O antropólogo Carlos Duche Hidalgo publicou em 2010 um estudo sobre evidências históricas de que em 1671 os Napur runas, ancestrais kichwas dos atuais habitantes de Tzawata, Ila e Chucalpi, se estabeleceram permanentemente na bacia do rio Anzu devido às terras férteis e por ser um local estratégico para a mobilidade fluvial e o intercâmbio comercial. Exitem também petróglifos mostrando os habitantes originários. Também foram encontrados antigos cemitérios e locais sagrados onde eram realizados rituais como beber guayusa e ayahuasca.
Em 2013, a Defensoria Pública solicitou ao juiz do cantão de Tena medidas cautelares a favor de Tzawata devido ao conflito com Merendon. No relatório há fotos dos danos aos locais sagrados e desmatamento em áreas agrícolas da comunidade devido à atividade de mineração ocorrida entre 2006 e 2008. O juiz não concedeu medidas cautelares.
Essas decisões políticas são arbitrárias, diz Noroña e lembra que entre 2010 e 2019 o Estado equatoriano entregou a 82 comunidades seus títulos de propriedade ancestral. Algumas delas aceitaram posteriormente a presença de empresas mineradoras ou petrolíferas. Ele cita o caso Pañacocha, no qual deram a ancestralidade a um povo mestiço que viveu naquela área por 40 anos, e que hoje apoia e permite a passagem de máquinas até chegarem à estação petrolífera de El Edén, no Bloco 12.
―Essa coisa de ancestralidade é muito subjetiva, assim como a denominação indígena. A Constituição diz que são necessários apenas 40 anos para uma comunidade reivindicar sua ancestralidade, no caso Tzawata já houve perícias antropológicas, não sei por que pedem outras. Esses conceitos permitem a interferência dos interesses do Estado. No caso Tzawata, pedem a ancestralidade para expulsar a mineradora das suas terras― diz Noroña.
Em 30 de janeiro de 2022, a Defensoria Pública de Napo, juntamente com Kambak Alvarado Wayra e organizações de Direitos Humanos e da Natureza mais uma vez solicitaram uma ação de proteção contra o Estado e a favor da comunidade Tzawata para que esta não seja despejada.
“No rio Ila pescávamos, havia cerimônias, o banho, as montanhas eram sagradas. Ali viviam nossos ancestrais e dali tinham a energia que dava a pachamama. Junto ao rio Pupo havia uma caverna de importância cultural, danificada pela mineração. Ao perder a caverna, afetou a cultura. Não era mais possível fazer rituais, os Yachak não tinham mais a mesma energia, adoeciam”, disse Andrés Alvarado, morador de Tzawata. Seu depoimento consta nas atas de um laudo pericial antropológico realizado pelo Conselho do Judiciário em 2021, que foi utilizado pela comunidade Tzawata para esta nova demanda de Ação de Proteção contra o Estado equatoriano pelas tentativas de despejo.
“A falta desses espaços afeta as novas gerações. Como nossos filhos não viram, não acreditam mais. Nós [nos] sentamos para beber guayusa e ayahuasca, então fantasiamos. Agora os jovens já não fantasiam tanto quanto antes”, afirmou Alvarado nesta transcrição utilizada como argumento.
Termina a Guaysupina e começa a festa, em meio à indignação
São 6 horas da manhã do dia 18 de março de 2023. Após a limpeza do sábio, no chão da sala comunitária, os organizadores distribuem folhas de bananeira. Sobre estas, colocam tigelas com sopa, banana-da-terra cozida e filés de peixe do rio. A população se senta e divide a comida com as mãos. A música foi substituída pelo som dos pássaros e do rio Anzu.
Chega o vigia indígena noturno e saem os do novo turno. Os que ficaram colocam suas lanças de lado e se servem de um prato de comida. Não houve novidades, ninguém tentou despejá-los de suas terras. Um dia a menos. Um dia mais.
Enquanto todos comem na sala comunitária de Tzawata, José 'Pepe' Moreno, presidente dos coletivos sociais de Napo que lutam contra a mineração, está sentado à margem do rio. Está sozinho. Pensativo.
Garante que a divisão das comunidades, em que cada morador tem um título de propriedade privada, as torna mais vulneráveis à divisão social. Enquanto o que acontece em Tzawata é um exemplo de como manter as terras comunitárias, nas quais todos decidem igualmente e têm o mesmo acesso à água e ao solo, permitindo ter força para enfrentar 12 anos de tentativas de despejo.
Esta aliança jornalística pediu ao Ministério da Agricultura as resoluções de despejo e sua posição neste litígio em que é parte dos réus na nova ação de proteção apresentada por Tzawata. Não obteve nenhuma resposta.
Pela primeira vez, entre a neblina daquela manhã de março de 2023 se vê um Pepe sorridente fazendo mapas na areia. Conhece a província de cor. E todas as concessões de mineração, e todos os operadores ilegais, e todas as empresas legais que não cumprem os planos de gestão ambiental. Enumera os rios poluídos, os rios mortos, os rios a serem defendidos, os nomes de todos os líderes ―os que são a favor da mineração e os que são contra―, dos burocratas envolvidos, das instituições, da corrupção, da impunidade. Pepe Moreno é de origem kichwa e desenha na areia os biocídios que denuncia há dois anos. Sabe os números dos autos, das denúncias, dos relatórios, das fiscalizações. Por que você faz isso? Porque não pode fazer outra coisa, porque não pode acreditar que já não exista aquela paz na selva em que cresceu. Porque se nega a acreditar que o verde denso da selva possa ser substituído por rochas, crateras e água envenenada. Seus colegas telefonam para ele e ele sai da margem do rio gritando um número do trâmite de uma concessão.
Quatro dias depois, em 22 de março de 2023, viralizou um vídeo que registrou como três homens cercaram Pepe e o agrediram. Eram mineradores ilegais que souberam que ele estava acompanhando os militares em uma operação. Sabiam que era ele, apesar da máscara de esqui. Gritavam (segurando-o pelos cabelos): "nos deixe trabalhar, merda, estamos endividados".
Por WhatsApp Pepe dirá que está bem e que isso só demonstra que há pessoas infiltradas nas instituições de fiscalização, que, além de avisarem que há grupos sociais monitorando e denunciando a mineração ilegal, também informam, horas antes, sobre as operações, permitindo que as máquinas sejam escondidas na floresta.
Para Fiodor Mena, presidente do Colégio de Engenheiros Ambientais do Equador, os prejuízos da mineração legal e ilegal são inimagináveis, mas ele tenta descrevê-los com a seriedade e a rigidez de um cientista. “Em Napo, 31.521 hectares estão concessionados a 180 empresas mineradoras. Lembre-se deste dado”, diz.
Mena insiste em que a mineração desmata florestas e áreas agrícolas, colocando em risco a soberania alimentar. A contaminação dos rios afeta as comunidades que não possuem água potável e utilizam essas fontes naturais. Garante que os conflitos sociais aumentam com as mudanças nos padrões de vida, como a migração e o aumento das atividades ilegais. Os solos “lavados”, diz ele, continuam contaminados, perdendo a sua fertilidade e gerando prejuízos econômicos ao Estado.
Mena faz um cálculo: “Esses 31.521 hectares concessionados a mineradoras projetam um custo de restauração ambiental e custos de serviços ambientais que somam US$ 2.242.441.755 em 10 anos. Apenas em Napo”.
Então Mena pega outro dado da gigantesca matriz que vê em sua tela e diz que os royalties da mineração do chamado Fundo Comum ST CTEA para a extração mineral geram, em Napo, US$ 27.000 por ano. O que significa que, em 10 anos, por esta rubrica, a província receberia US$ 270.000.
- É rentável? É sustentável? Questiona Fiodor, seguido de um silêncio que encerra a sessão de Zoom.
São 9 da manhã de 18 de março de 2023. A infância de Tzawata não conhece esses cálculos. Mas conhece muito a Amazônia. Três meninas e quatro meninos descem ao rio. Caminham facilmente sobre cada pedra. Eles querem nos mostrar uma pedra que funciona como escorregador. Eles nos pedem para segui-los. Vão com pressa, conversam em kichwa entre si. Eles chegam à grande pedra. Caminham até a beira e se jogam naquela espécie de redemoinho que a correnteza produz. Todos riem. Abaixo fazem a curva justa que os devolve à margem. Retornam correndo para continuar pulando.
Entre as pedras está uma menina de dois anos. Sua irmã mais velha a desafia, a menina a ignora e continua descendo. Sabe o lugar certo de parar e olhar. A mãe dela, Samanta Aranda, aparece com três peças de roupa que lavou no rio. A bebê a segue. As outras crianças também abandonam o rio e entram na casa de Samanta pelos galhos. A cabana se levanta sobre pilares de bambu. No andar de baixo há roupas penduradas, uma mesa, uma bicicleta e uma escada que leva ao segundo andar, onde ficam os quartos.
Na frente da casa há uma cerca de pedras com carvão enterrado no chão. Quatro pilares sustentam um telhado de palha. É a cozinha. De um lado, prateleiras onde se exibem panelas de cerâmica. Samanta as confecciona para seu uso pessoal e para alugá-las, por US$ 5, às suas vizinhas quando recebem visitas. Samanta é de outra província. Chegou a Tzawata como parte da juventude de Pastaza que veio lutar contra os primeiros despejos em 2010 e foi assim que conheceu Carlos Aguinda, que lutava por sua terra. Samanta ficou e eles já têm quatro filhos: Juan Carlos, Kely, Froilán e Yali, uma bebê de dois anos.
As crianças têm seus rostos marcados em vermelho. Brincaram com corante natural. Continuam correndo pela floresta. Bebem um cacau. Elas o abrem e comem. Há também uvillas. Mais adiante, cercam uma enorme árvore que deixa cair as famosas sementes de huayruro. São vermelhas com preto. Há pequenas e grandes. As meninas explicam que com isso fazem pulseiras e colares que dão proteção e cuidam das más energias.
As crianças desaparecem
De volta à casa comunitária, preparam as cervejas e os times para os campeonatos de futebol masculino e feminino. A sessão solene. O almoço comunitário. Continuação do campeonato. Jogos tradicionais e o chichazo dançante.
Kambak descansa por um momento em uma velha caminhonete. Posa para uma foto com dois amigos. Já tem a ideia da resposta que vai escrever à ACNUDH.
Na segunda-feira, 20 de março, terá início a audiência sobre a Ação de Proteção que a comunidade Tzawata moverá contra o Estado equatoriano por não respeitar as leis e os tratados internacionais que protegem o direito à propriedade das terras das comunidades indígenas.
A ancestralidade luta nas Cortes
O Doutor em Leis, Eduardo Rojas, é jovem, ou parece jovem. Sempre se veste de forma casual e possui um olhar altivo. Ele é o Defensor Público da província de Napo. Cada conversa com ele é uma aula de legislação ambiental.
Sobre o caso Tzawata, Rojas lembra que o Equador assinou, em 1997, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que garante, desde o primeiro artigo, que seja respeitado e preservado o acesso e o uso de suas terras ancestrais às comunidades indígenas que tenham vivido ali desde antes das atuais fronteiras estatais. Isso é apoiado pela Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas, que reforça a proibição de desalojar forçosamente os povos indígenas.
Rojas cita ainda duas sentenças da Corte Constitucional do Equador e duas sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ferramentas legais com as quais Kambak Alvarado está forçosamente familiarizado.
O líder indígena já havia nos enviado pelo celular a carta do ACNUDH na qual o Alto Comissariado, Jan Jarab, pede ao Estado equatoriano que considere seriamente a revogação da ordem de despejo, ao menos enquanto se resolve a posse das terras.
Este pedido internacional foi emitido após Tzawata sofrer novas tentativas de despejo, desta vez pela Intendência da Polícia de Napo, conforme o documento MDG-GNAP-GSC-2023-0068-OF de 1 de março de 2023 e ao qual esta Aliança teve acesso. Segundo o ofício, o intendente Manuel Paredes pede apoio técnico ao prefeito de Carlos Julio Arosemena Tola (cantão onde se situa Tzawata) para cumprir um despejo ordenado pelo Ministério da Agricultura.
Em uma entrevista em 16 de março de 2023 em Britel, um canal digital local, o intendente da Polícia de Napo, Manuel Paredes Mero, negou que houvesse tal ordem de despejo, a que Rojas respondeu posteriormente, no mesmo veículo, que os documentos são de domínio público e que a ordem é real.
Três semanas depois, o intendente de 52 anos foi detido, juntamente com o comissário do cantão Julio Arosemena Tola e três outros funcionários, por venderem em casas noturnas bebidas alcoólicas e cervejas apreendidas em várias operações policiais da província.
Kambak soube do fato porque Paredes foi um dos servidores públicos que devia participar das audiências da ação de proteção, iniciada por Tzawata em 20 de março, e o fez da prisão. O ex-intendente defendeu o direito da empresa Terraturismo de manter o título de propriedade dos 627 hectares. Anos atrás, o agora detido foi advogado da comunidade de Tzawata.
"Este intendente tinha a obrigação de se eximir de conhecer o trâmite porque não podia agir contra àqueles que foram seus clientes na mesma causa", disse por telefone Eduardo Rojas, defensor Público de Napo, que insiste em que "essas coisas podem acontecer por aqui, porque as pessoas se vendem pelo lance mais alto”.
Eduardo Rojas anda com colete à prova de balas.
Por que você luta tanto pelos direitos da natureza e das comunidades indígenas? A resposta é muito parecida com a de Pepe Moreno. Rojas por um instante renuncia à voz firme de advogado e muda o tom para um sussurro genuíno que revela o menino que viveu correndo pela Amazônia, banhando-se em seus rios e que se recusa a perder aquele paraíso que guarda em sua mente.
“É da Presidência da República, na época, que foram concedidas as terras que pertenciam aos povos e nacionalidades indígenas e que têm o direito de posse ancestral histórica e o direito de comparecer hoje perante a Justiça Constitucional para reclamar esses direitos”, disse o Defensor Público no final da primeira audiência da Ação de Proteção de Tzawata contra o Estado equatoriano.
Ao seu lado esquerdo, em silêncio, estava Kambak. À direita estava Sandra Rueda, presidente do Conselho Nacional de Defensores dos Direitos Humanos e da Natureza, uma organização civil que reúne ativistas, comunidades e acadêmicos de todo o país.
Rueda esteve no festejo de Tzawata, na audiência da Ação de Proteção, e em 11 de abril de 2023 compareceu perante a Assembleia Nacional para denunciar atividades "legais" ― destaca as aspas―e ilegais em 38 novas frentes de mineração em Napo. Também denunciou os desastres naturais causados pela mineração pela falta de controle das instituições responsáveis.
As meninas de Tzawata, talvez inspiradas por Rueda, explicaram nesse 18 de março de 2023, entre as festividades de seu povo, os benefícios de várias plantas, os animais que vivem na selva, seus dias de escola e suas tardes de lazer entre as árvores e a água fria do rio Anzu. Não tinham mais de 10 anos e já trocavam entre si os produtos das chácaras de cada uma de suas famílias. Cuidavam das folhas dos arbustos das explosões de felicidade dos mais novos.
Serão a próxima geração que decidirá o que fazer com suas terras, se ainda continuarem sendo suas.